Início

Entrevistas

Criticas

Artigos

Concertos

 Concursos e Audições Escolas e Cursos Partituras  Cds / DVDs / Livros Sobre o portal Contato
  • 04/04/2018

     

    Música Doméstica e Tecnologia

    por Ricardo Tacuchian
     

    O Século XX testemunhou uma curiosa curva das relações existentes entre o declínio da Música Doméstica, no início do século, para uma ascensão já no final do mesmo período. Curiosamente, as causas das duas viradas na Música Doméstica foi o surgimento e desenvolvimento de uma tecnologia eletroeletrônica. Neste texto, estamos usando a denominação Música Doméstica para toda manifestação musical, feita em casa, nas horas de lazer, por músicos amadores, em comunidades urbanas. Portanto, excluímos deste conceito a rica manifestação folclórica que é uma tradição predominantemente rural.

    Na Idade Média, já era comum a família se reunir em torno de uma mesa, para cantar um moteto, cujas partes eram dispostas no papel, de modo que cada cantor pudesse ler o texto, sem deixar o seu assento. Ainda, os Mestres-Cantores eram artesãos que preenchiam suas horas de lazer com uma prática musical.

    Na Renascença, a Música Doméstica era muito difundida, apesar de não ter a mesma repercussão daquela feita por profissionais, nas casas da nobreza ou na Igreja. Era uma música intimista, cantada por vozes brancas, algumas delas substituídas por um instrumento musical.
    Na passagem da Renascença para o Barroco, a música vocal passa a ser paulatinamente substituída pela música instrumental, no repertório da música doméstica. Uma emergente classe mercantil vai, aos poucos, substituindo a classe aristocrática que, simbolicamente, é degolada na Revolução Francesa. Com o enriquecimento, e dispondo de mais tempo para o lazer, a classe média, que também gostava de imitar a nobreza, fazia música em casa, apesar de não poder contar com a participação de músicos profissionais. Este fato trouxe um grande desenvolvimento para a indústria de manufatura de instrumentos, principalmente o piano, e para a impressão de música de amadores.

    Em 1765 o impressor Immanuel Breitkopf encontrou um novo método de impressão musical, que muito barateou a difusão de partituras para uso doméstico, tanto para piano ou canto e piano, como para pequenos conjuntos camerísticos. No século XVIII, foi muito rara a impressão de música para profissionais, especialmente para orquestra, porque não era comercialmente viável. A maior parte das publicações editadas em Londres, Paris, Leipzig e Viena, na passagem do século XVIII para o XIX, era de música para amadores, de larga procura no mercado (Leon Platinga, Romantic Music, New York/ London, W. W. Norton, 1984, p. 10). Nessa ocasião, era curioso, por exemplo, o hábito de se escrever música para piano com acompanhamento de violino ou flauta. O próprio Beethoven chegou a compor variações para piano com flauta ou violino opcionais, op. 105 e 107. Antes, em 1781, Mozart já chamara Viena de “a terra do piano”, referindo-se à popularidade deste instrumento entre os amadores.

    No século XVIII, foi publicada uma quantidade infindável de canções, com simples estrutura estrófica, geralmente impressas em apenas duas pautas, com a letra escrita entre as duas. A peça poderia ser tocada e cantada pelo mesmo intérprete, ou apenas ser tocada ao piano.
    Em 1798, surgiu em Leipzig o Allgemeine musikalische Zeitung, periódico destinado a atender à nova demanda de amadores e incentivar a venda, para eles, de partituras e de instrumentos musicais. É sintomático o fato de ter sido lançado por uma casa editora, a Breitkopf und Härtel, provavelmente com o objetivo de aumentar as suas vendas. Entre 1798 e 1848, surgiram outras duzentas e sessenta publicações deste gênero nas principais cidades da Europa. Estes jornais ou revistas traziam artigos sobre música em geral, críticas de concertos e de obras recém-publicadas, reportagens e entrevistas, suplementos musicais e anúncios de casas editoras.

    Por outro lado, há referências de que, na cidade de Viena, durante o carnaval de 1821, houve cerca de mil e seiscentos bailes em casa particulares (Platinga, p. 82). São bem conhecidas as Schubertíadas, festas que o renomado compositor vienense fazia no campo para seus amigos. Schubert compôs muita música de excelente qualidade destinada a um público amador, como os ländlers, valsas, marchas, rondós, variações e canções. Os seus quartetos, escritos entre 1812 e 1815, foram direcionados a amadores. Grande parte da produção camerística com piano, impressa, do século XIX, pretendia alcançar os músicos amadores. Geralmente, o piano exercia um papel predominante, enquanto as cordas funcionavam subservientemente.

    O enfoque na obra dos grandes mestre do século XIX tem deixado de lado este importante aspecto da vida musical, que foi a Música Doméstica, agora resgatada pelos modernos historiadores como fato da maior relevância. Naturalmente, o Rio de Janeiro, como reflexo das tendências europeias de então, também apresenta um grande florescimento da Música Doméstica, durante o século XIX. Esta música ganha desenvoltura no tempo de D. Pedro I que, por motivos econômicos, foi obrigado a reduzir drasticamente a música praticada na corte. Ao lado disso, começa a ascender uma nova classe urbana, enriquecida no comércio, que frequenta o teatro, mas também faz música em casa. Surge, então, no Rio, vários professores estrangeiros, principalmente de piano, que se mantêm dando aulas particulares para as filhas da classe emergente.
    Já nos idos de 1823, foi publicado o primeiro compêndio de música no Brasil, a Arte da música para uso da mocidade brasileira, por um seu patrício, na Tipografia de Silva Porto e Cia. Lembremos que, até D. João VI, não havia imprensa no país. Em 1824, foi lançado outro compêndio didático, este de autoria de Bonifácio Asioli. O comércio de música, com a venda de partituras e instrumentos, como ocorreu na Europa, ganhou um grande incremento. A primeira notícia da chegada de uma pianola no Rio é de 1823 (Ayres de Andrade, Francisco Manuel da Silva e seu tempo, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, vol. 1, p. 134). Cita Ayres de Andrade que, “em 1829, J. Christian Müller, mestre consertador e afinador de piano, promove a primeira publicação de música em série de que se há notícias no Brasil” (idem, p. 135).

    Em 1834, foi fabricado o primeiro piano no Rio. Este instrumento se tornou tão popular nas casa de classe média brasileira, que levou Mário de Andrade a cunhar o termo “pianolatria”. A música de sucesso, apresentadas nos teatros de revista, eram vendidas no dia seguinte, em reduções simplificadas para piano. Chiquinha Gonzaga foi um exemplo de compositor que se beneficiou desta prática.
    A literatura brasileira é úbere de citações de saraus, encontros poético-musicais de caráter informal, realizados em casa particulares. Na segunda metade do século XIX, as classes mais pobres também cultivavam a Música Doméstica em festas residenciais, que eram chamadas de “pagodes”. Lá se desenvolviam o maxixe e o choro, duas raízes básicas da música popular brasileira.
    O ensino de música para a classe média inicia-se no Rio, com aulas específicas ministradas no Colégio Pedro II, em 1838. Em 1841, foi criado o primeiro estabelecimento privado de ensino musical: o Liceu Musical. Até 1865 surgiram o Conservatório de Música e Dança, o Liceu Musical e Copistaria, o Conservatório Vocal e Instrumental e muitos outros. Todos eram dirigidos para uma prática musical amadorística. Mesmo o Imperial Conservatório de Música (criado em 1848) atendia muito mais aos interesses de músicos amadores do que de profissionais, apesar de ter formado, por exemplo, um músico como Carlos Gomes.

    Mas, por trás deste panorama da Música Doméstica, começava a surgir um fato novo que, sorrateiramente, viria a banir toda esta atividade amadorística residencial: a tecnologia da gravação e da radiodifusão. Em 1877, Thomas Edison consegue aprisionar o som em cilindros, que são capazes de reproduzi-los para qualquer ouvinte, numa máquina chamada “fonógrafo”. Seguem-se o gramofone de Emil Berliner, e a vitrola de Eldridge Johnson, ambos registrando o som em discos. Em 1919, nos Estados Unidos, mais de dois milhões de fonógrafos já tinham sido fabricados e as vendas de discos chegavam perto de cem milhões de unidades por ano (Irving L. Sablosky, A Música Norte-Americana, Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 111).

    O ano seguinte é o do início da radiodifusão. O Dr. Frank Conrad instalou sobre sua garagem, em Pittsburgh, os equipamentos necessários para a transmissão de música gravada. Apesar de poucas pessoas possuírem aparelhos especialmente montados para receber estas ondas, aumentou de modo surpreendente a venda de discos, que eram transmitidos por aquela estação experimental. O pragmatismo norte-americano logo percebeu que aquela tecnologia poderia ser fonte de lucros incomensuráveis. No mesmo ano, a Westinghouse começou a vender aparelhos receptores prontos e a própria firma inaugurou a estação de rádio KDKA, em 1920, para promover a venda de mais receptores de rádio. Apenas dois anos mais tarde, sessenta mil residências já tinham aparelhos de rádio e trinta estações já estavam no ar (idem, p. 113). Em 1927, estes números pularam para sete milhões de residências com aparelhos e setecentas estações de rádio. Em 1931, foram feitas as primeiras transmissões radiofônicas “ao vivo” do Metropolitan Opera, pela NBC. Era o golpe mortal para a Música Doméstica. Antes, em 1927 havia surgido o cinema sonoro com o filme The Jazz Singer.

    Em 1947, era crescente a citação de gravações em fita magnética. Em 1948, surgiu o long-playing e, em 1966, a fita-cassete com gravações estereofônicas. Finalmente a TV a cabo MTV passou a transmitir vídeos de música vinte e quatro horas por dia e, em 1983, surgiu o compact disc.
    Assim como o Brasil refletiu as tendências ocorridas na Europa, no século XIX, o mesmo ocorreu no século XX, em relação aos Estados Unidos. O fonógrafo de Thomas Edison chegou no Brasil dois anos depois de inventado, isto é, em 1879, na cidade de Porto Alegre (Atos Damasceno, Palco, salão e picadeiro, Porto Alegre: Ed. Globo, 1956, p.11, apud J. R. Tinhorão, Música Popular: do gramofone ao rádio e TV, São Paulo: Editora 34, p. 15). Mas o primeiro comerciante das máquinas falantes e dos cilindros de Thomas Edison começou sua trajetória de Caixeiro viajante no Amazonas, percorrendo todo o Nordeste e chegando ao Rio em 1892 (J. R. Tinhorão: Música Popular: do gramofone ao rádio e TV, São Paulo: Editora 34, p. 18). Frederico Figner _ este era o seu nome _ apresentava duas sessões da máquina-falante por dia, cobrando ingressos no valor de 1$000. Mais tarde, Figner fundou a Casa Edison, a primeira gravadora comercial do Brasil.

    O fonógrafo de cilindros foi logo comercializado em todo o litoral brasileiro e em Minas Gerais. Em 1897, Figner começa a gravar cilindros com música popular brasileira com os cantores Antônio da Costa Moreira, o Cadete, e Manuel Pedro dos Santos, o Baiano, cantando modinhas e lundus com acompanhamento de violão; e com Anacleto de Medeiros, com a recém-criada Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro (Tinhorão, op. Cit. p. 20-21).

    Em 1940, entra no mercado brasileiro o gramofone, com os discos de cera de Émile Berliner.

    No dia 7 de setembro de 1922, o presidente Epitácio Pessoa faz o discurso de inauguração da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, transmitido por uma estação montada pela pioneira Westinghouse e reproduzida através de um telefone-falante. A partir daí, os programas eram transmitidos através de alto-falantes e de cerca de oitenta receptadores cedidos a personalidades do Rio ou em praças públicas. É o início da era da radiodifusão no Brasil.

    O desenvolvimento fulgurante de toda esta tecnologia de gravação e de radiodifusão, passa pelo CD, pelo video-disc (logo em desuso), DVD e o CD-ROM, e provocaram um alto nível de profissionalização, tanto na música de concerto quanto na música popular (os mega-stars da música pop). Se fôssemos prosseguir no século XXI teríamos o advento do MP3, das gravações divulgadas pela rede (youtube) e das diferentes plataformas de streamings (Spotify, Deezer, iTunes, Apple Music, Tidal, Google Music, GVT Music, MixRadio, Napster, Rdio, Tuneln, Xvox Music entre outras).

    Toda esta tecnologia da comunicação representou um massacre na prática da Música Doméstica. Entretanto, no final do século XX, ocorreu um fato da maior relevância para a sociologia da música. A mesma tecnologia que inibiu a Música Doméstica passou a ressuscitá-la. Ao lado da tecnologia de radiodifusão, de gravação do som, nos anos 50, surgiu uma terceira linhagem de equipamentos eletroeletrônicos: os sintetizadores de som. Inicialmente gigantescos e caros, ganham impulso nos anos 60 com o princípio estabelecido por Robert Moog, de sintetizador controlado por diferença de voltagem, tais como o Buchla, o Syn-ket e o próprio Moog.

    Mas foi nos anos 70 que estes instrumentos ganharam um aperfeiçoamento que iria mudar a relação entre Música Doméstica e tecnologia. Foi o advento do uso da tecnologia digital na construção do sintetizador, com o lançamento do Dartmouth Digital Synthesizer. O sintetizador deixa de ser um instrumento analógico e entra na era da tecnologia digital, com todas as vantagens que isso representa: maior facilidade de operação, maior precisão na definição dos parâmetros sonoros, mais variedade de recursos, possibilidade de preservar a música numa memória para depois resgatá-la e reeditá-la, e o menor preço. O Synclavier (1976) e o Synclavier II (1980) já vinham acoplados a um computador que controlava todos os parâmetros da síntese sonora e todas as operações algorítmicas.

    Outra grande revolução ocorreria no mundo da tecnologia do som: a definição do protocolo MIDI (1983), que permitiria a troca de informações entre diferentes teclados (agora não mais chamados de sintetizadores) e entre eles e um computador. A partir daí, cada vez mais foram se sofisticando os aparelhos ou surgindo novos (como é o caso dos samplers e dos sample-players), para uso profissional ou se simplificando, para uso de amadores. Atualmente, continuam surgindo no comércio teclados destinados a um público amador que, num mini estúdio doméstico, monta seus arranjos e suas orquestrações com grande facilidade. Vários profissionais de outras áreas procuram esta aparelhagem para fazer música nas horas de lazer. Mesmo no campo da música eletroacústica, cada vez mais se faz presente a figura do criador que não tem uma formação musical convencional habitual. Como o preço desta tecnologia vem despencando, a tendência é a popularização progressiva desta prática.

    Além da tecnologia da computer music, o surgimento e aperfeiçoamento da guitarra elétrica e do baixo elétrico permitiu a um grupo crescente de jovens, no mundo inteiro, formarem suas bandas, ensaiando em apartamentos, muitas vezes para desespero dos vizinhos. A guitarra elétrica de corpo sólido surgiu nos anos 40, mas adquiriu popularidade internacional com o adventos do rock’n’roll a partir dos anos 60 e o surgimentos de bandas pop profissionais, algumas de alta sofisticação.

    Outro fato novo que devemos destacar nesta nova sociologia da Música Doméstica é o surgimento de um grande número de pequenas escolas particulares de música, que romperam com o formato educativo tradicional até então usado e ministram aulas para crianças, com largo uso dos teclados eletrônicos. Algumas dessas crianças acabam se transformando em músicos profissionais. Muitos adultos também recorrem a estas escolas com a única finalidade de preencher o seu tempo de lazer.

    Estamos assistindo a um renascer da Música Doméstica, graças ao grande desenvolvimento da tecnologia, a mesma que a tinha conduzido quase à extinção. E hoje, com uma vantagem adicional em relação ao século XIX: o amador faz música em seu quarto, nas horas de lazer, e depois assiste a uma ópera ou a um mega show de um pop star internacional no monitor de sua sala. São apenas alguns passos.


    Ricardo Tacuchian
    Compositor e Regente
    Membro da Academia Brasileira de Música

    (textos publicados nas colunas deste portal são de inteira responsabilidade de seus autores. Dúvidas ou questões, entrar em contato diretamente com o autor)

    Imagem de capa: Dom Pedro I ao piano, compondo o Hino Nacional - quadro de Augusto Bracet (reprodução da internet)

     

    VOLTAR PARA O ÍNDICE DA COLUNA CRÔNICAS DE UM COMPOSITOR

     

     





 


 

 

        

 

Copyright 2015/2017 - BrasilClassico.com.br