por Ricardo Tacuchian
O Século XX testemunhou uma curiosa
curva das relações existentes entre o
declínio da Música Doméstica, no início
do século, para uma ascensão já no final
do mesmo período. Curiosamente, as
causas das duas viradas na Música
Doméstica foi o surgimento e
desenvolvimento de uma tecnologia
eletroeletrônica. Neste texto, estamos
usando a denominação Música Doméstica
para toda manifestação musical, feita em
casa, nas horas de lazer, por músicos
amadores, em comunidades urbanas.
Portanto, excluímos deste conceito a
rica manifestação folclórica que é uma
tradição predominantemente rural.
Na Idade Média, já era comum a família
se reunir em torno de uma mesa, para
cantar um moteto, cujas partes eram
dispostas no papel, de modo que cada
cantor pudesse ler o texto, sem deixar o
seu assento. Ainda, os Mestres-Cantores
eram artesãos que preenchiam suas horas
de lazer com uma prática musical.
Na Renascença, a Música Doméstica era
muito difundida, apesar de não ter a
mesma repercussão daquela feita por
profissionais, nas casas da nobreza ou
na Igreja. Era uma música intimista,
cantada por vozes brancas, algumas delas
substituídas por um instrumento musical.
Na passagem da Renascença para o
Barroco, a música vocal passa a ser
paulatinamente substituída pela música
instrumental, no repertório da música
doméstica. Uma emergente classe
mercantil vai, aos poucos, substituindo
a classe aristocrática que,
simbolicamente, é degolada na Revolução
Francesa. Com o enriquecimento, e
dispondo de mais tempo para o lazer, a
classe média, que também gostava de
imitar a nobreza, fazia música em casa,
apesar de não poder contar com a
participação de músicos profissionais.
Este fato trouxe um grande
desenvolvimento para a indústria de
manufatura de instrumentos,
principalmente o piano, e para a
impressão de música de amadores.
Em 1765 o impressor Immanuel Breitkopf
encontrou um novo método de impressão
musical, que muito barateou a difusão de
partituras para uso doméstico, tanto
para piano ou canto e piano, como para
pequenos conjuntos camerísticos. No
século XVIII, foi muito rara a impressão
de música para profissionais,
especialmente para orquestra, porque não
era comercialmente viável. A maior parte
das publicações editadas em Londres,
Paris, Leipzig e Viena, na passagem do
século XVIII para o XIX, era de música
para amadores, de larga procura no
mercado (Leon Platinga, Romantic Music,
New York/ London, W. W. Norton, 1984, p.
10). Nessa ocasião, era curioso, por
exemplo, o hábito de se escrever música
para piano com acompanhamento de violino
ou flauta. O próprio Beethoven chegou a
compor variações para piano com flauta
ou violino opcionais, op. 105 e 107.
Antes, em 1781, Mozart já chamara Viena
de “a terra do piano”, referindo-se à
popularidade deste instrumento entre os
amadores.
No século XVIII, foi publicada uma
quantidade infindável de canções, com
simples estrutura estrófica, geralmente
impressas em apenas duas pautas, com a
letra escrita entre as duas. A peça
poderia ser tocada e cantada pelo mesmo
intérprete, ou apenas ser tocada ao
piano.
Em 1798, surgiu em Leipzig o Allgemeine
musikalische Zeitung, periódico
destinado a atender à nova demanda de
amadores e incentivar a venda, para
eles, de partituras e de instrumentos
musicais. É sintomático o fato de ter
sido lançado por uma casa editora, a
Breitkopf und Härtel, provavelmente com
o objetivo de aumentar as suas vendas.
Entre 1798 e 1848, surgiram outras
duzentas e sessenta publicações deste
gênero nas principais cidades da Europa.
Estes jornais ou revistas traziam
artigos sobre música em geral, críticas
de concertos e de obras
recém-publicadas, reportagens e
entrevistas, suplementos musicais e
anúncios de casas editoras.
Por outro lado, há referências de que,
na cidade de Viena, durante o carnaval
de 1821, houve cerca de mil e seiscentos
bailes em casa particulares (Platinga,
p. 82). São bem conhecidas as
Schubertíadas, festas que o renomado
compositor vienense fazia no campo para
seus amigos. Schubert compôs muita
música de excelente qualidade destinada
a um público amador, como os ländlers,
valsas, marchas, rondós, variações e
canções. Os seus quartetos, escritos
entre 1812 e 1815, foram direcionados a
amadores. Grande parte da produção
camerística com piano, impressa, do
século XIX, pretendia alcançar os
músicos amadores. Geralmente, o piano
exercia um papel predominante, enquanto
as cordas funcionavam subservientemente.
O enfoque na obra dos grandes mestre do
século XIX tem deixado de lado este
importante aspecto da vida musical, que
foi a Música Doméstica, agora resgatada
pelos modernos historiadores como fato
da maior relevância. Naturalmente, o Rio
de Janeiro, como reflexo das tendências
europeias de então, também apresenta um
grande florescimento da Música
Doméstica, durante o século XIX. Esta
música ganha desenvoltura no tempo de D.
Pedro I que, por motivos econômicos, foi
obrigado a reduzir drasticamente a
música praticada na corte. Ao lado
disso, começa a ascender uma nova classe
urbana, enriquecida no comércio, que
frequenta o teatro, mas também faz
música em casa. Surge, então, no Rio,
vários professores estrangeiros,
principalmente de piano, que se mantêm
dando aulas particulares para as filhas
da classe emergente.
Já nos idos de 1823, foi publicado o
primeiro compêndio de música no Brasil,
a Arte da música para uso da mocidade
brasileira, por um seu patrício, na
Tipografia de Silva Porto e Cia.
Lembremos que, até D. João VI, não havia
imprensa no país. Em 1824, foi lançado
outro compêndio didático, este de
autoria de Bonifácio Asioli. O comércio
de música, com a venda de partituras e
instrumentos, como ocorreu na Europa,
ganhou um grande incremento. A primeira
notícia da chegada de uma pianola no Rio
é de 1823 (Ayres de Andrade, Francisco
Manuel da Silva e seu tempo, Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, vol. 1,
p. 134). Cita Ayres de Andrade que, “em
1829, J. Christian Müller, mestre
consertador e afinador de piano, promove
a primeira publicação de música em série
de que se há notícias no Brasil” (idem,
p. 135).
Em 1834, foi fabricado o primeiro piano
no Rio. Este instrumento se tornou tão
popular nas casa de classe média
brasileira, que levou Mário de Andrade a
cunhar o termo “pianolatria”. A música
de sucesso, apresentadas nos teatros de
revista, eram vendidas no dia seguinte,
em reduções simplificadas para piano.
Chiquinha Gonzaga foi um exemplo de
compositor que se beneficiou desta
prática.
A literatura brasileira é úbere de
citações de saraus, encontros
poético-musicais de caráter informal,
realizados em casa particulares. Na
segunda metade do século XIX, as classes
mais pobres também cultivavam a Música
Doméstica em festas residenciais, que
eram chamadas de “pagodes”. Lá se
desenvolviam o maxixe e o choro, duas
raízes básicas da música popular
brasileira.
O ensino de música para a classe média
inicia-se no Rio, com aulas específicas
ministradas no Colégio Pedro II, em
1838. Em 1841, foi criado o primeiro
estabelecimento privado de ensino
musical: o Liceu Musical. Até 1865
surgiram o Conservatório de Música e
Dança, o Liceu Musical e Copistaria, o
Conservatório Vocal e Instrumental e
muitos outros. Todos eram dirigidos para
uma prática musical amadorística. Mesmo
o Imperial Conservatório de Música
(criado em 1848) atendia muito mais aos
interesses de músicos amadores do que de
profissionais, apesar de ter formado,
por exemplo, um músico como Carlos
Gomes.
Mas, por trás deste panorama da Música
Doméstica, começava a surgir um fato
novo que, sorrateiramente, viria a banir
toda esta atividade amadorística
residencial: a tecnologia da gravação e
da radiodifusão. Em 1877, Thomas Edison
consegue aprisionar o som em cilindros,
que são capazes de reproduzi-los para
qualquer ouvinte, numa máquina chamada
“fonógrafo”. Seguem-se o gramofone de
Emil Berliner, e a vitrola de Eldridge
Johnson, ambos registrando o som em
discos. Em 1919, nos Estados Unidos,
mais de dois milhões de fonógrafos já
tinham sido fabricados e as vendas de
discos chegavam perto de cem milhões de
unidades por ano (Irving L. Sablosky, A
Música Norte-Americana, Rio de Janeiro:
Zahar, 1994, p. 111).
O ano seguinte é o do início da
radiodifusão. O Dr. Frank Conrad
instalou sobre sua garagem, em
Pittsburgh, os equipamentos necessários
para a transmissão de música gravada.
Apesar de poucas pessoas possuírem
aparelhos especialmente montados para
receber estas ondas, aumentou de modo
surpreendente a venda de discos, que
eram transmitidos por aquela estação
experimental. O pragmatismo
norte-americano logo percebeu que aquela
tecnologia poderia ser fonte de lucros
incomensuráveis. No mesmo ano, a
Westinghouse começou a vender aparelhos
receptores prontos e a própria firma
inaugurou a estação de rádio KDKA, em
1920, para promover a venda de mais
receptores de rádio. Apenas dois anos
mais tarde, sessenta mil residências já
tinham aparelhos de rádio e trinta
estações já estavam no ar (idem, p.
113). Em 1927, estes números pularam
para sete milhões de residências com
aparelhos e setecentas estações de
rádio. Em 1931, foram feitas as
primeiras transmissões radiofônicas “ao
vivo” do Metropolitan Opera, pela NBC.
Era o golpe mortal para a Música
Doméstica. Antes, em 1927 havia surgido
o cinema sonoro com o filme The Jazz
Singer.
Em 1947, era crescente a citação de
gravações em fita magnética. Em 1948,
surgiu o long-playing e, em 1966, a
fita-cassete com gravações
estereofônicas. Finalmente a TV a cabo
MTV passou a transmitir vídeos de música
vinte e quatro horas por dia e, em 1983,
surgiu o compact disc.
Assim como o Brasil refletiu as
tendências ocorridas na Europa, no
século XIX, o mesmo ocorreu no século
XX, em relação aos Estados Unidos. O
fonógrafo de Thomas Edison chegou no
Brasil dois anos depois de inventado,
isto é, em 1879, na cidade de Porto
Alegre (Atos Damasceno, Palco, salão e
picadeiro, Porto Alegre: Ed. Globo,
1956, p.11, apud J. R. Tinhorão, Música
Popular: do gramofone ao rádio e TV, São
Paulo: Editora 34, p. 15). Mas o
primeiro comerciante das máquinas
falantes e dos cilindros de Thomas
Edison começou sua trajetória de
Caixeiro viajante no Amazonas,
percorrendo todo o Nordeste e chegando
ao Rio em 1892 (J. R. Tinhorão: Música
Popular: do gramofone ao rádio e TV, São
Paulo: Editora 34, p. 18). Frederico
Figner _ este era o seu nome _
apresentava duas sessões da
máquina-falante por dia, cobrando
ingressos no valor de 1$000. Mais tarde,
Figner fundou a Casa Edison, a primeira
gravadora comercial do Brasil.
O fonógrafo de cilindros foi logo
comercializado em todo o litoral
brasileiro e em Minas Gerais. Em 1897,
Figner começa a gravar cilindros com
música popular brasileira com os
cantores Antônio da Costa Moreira, o
Cadete, e Manuel Pedro dos Santos, o
Baiano, cantando modinhas e lundus com
acompanhamento de violão; e com Anacleto
de Medeiros, com a recém-criada Banda do
Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro
(Tinhorão, op. Cit. p. 20-21).
Em 1940, entra no mercado brasileiro o
gramofone, com os discos de cera de
Émile Berliner.
No dia 7 de setembro de 1922, o
presidente Epitácio Pessoa faz o
discurso de inauguração da Exposição
Internacional do Rio de Janeiro,
transmitido por uma estação montada pela
pioneira Westinghouse e reproduzida
através de um telefone-falante. A partir
daí, os programas eram transmitidos
através de alto-falantes e de cerca de
oitenta receptadores cedidos a
personalidades do Rio ou em praças
públicas. É o início da era da
radiodifusão no Brasil.
O desenvolvimento fulgurante de toda
esta tecnologia de gravação e de
radiodifusão, passa pelo CD, pelo
video-disc (logo em desuso), DVD e o
CD-ROM, e provocaram um alto nível de
profissionalização, tanto na música de
concerto quanto na música popular (os
mega-stars da música pop). Se fôssemos
prosseguir no século XXI teríamos o
advento do MP3, das gravações divulgadas
pela rede (youtube) e das diferentes
plataformas de streamings (Spotify,
Deezer, iTunes, Apple Music, Tidal,
Google Music, GVT Music, MixRadio,
Napster, Rdio, Tuneln, Xvox Music entre
outras).
Toda esta tecnologia da comunicação
representou um massacre na prática da
Música Doméstica. Entretanto, no final
do século XX, ocorreu um fato da maior
relevância para a sociologia da música.
A mesma tecnologia que inibiu a Música
Doméstica passou a ressuscitá-la. Ao
lado da tecnologia de radiodifusão, de
gravação do som, nos anos 50, surgiu uma
terceira linhagem de equipamentos
eletroeletrônicos: os sintetizadores de
som. Inicialmente gigantescos e caros,
ganham impulso nos anos 60 com o
princípio estabelecido por Robert Moog,
de sintetizador controlado por diferença
de voltagem, tais como o Buchla, o
Syn-ket e o próprio Moog.
Mas foi nos anos 70 que estes
instrumentos ganharam um aperfeiçoamento
que iria mudar a relação entre Música
Doméstica e tecnologia. Foi o advento do
uso da tecnologia digital na construção
do sintetizador, com o lançamento do
Dartmouth Digital Synthesizer. O
sintetizador deixa de ser um instrumento
analógico e entra na era da tecnologia
digital, com todas as vantagens que isso
representa: maior facilidade de
operação, maior precisão na definição
dos parâmetros sonoros, mais variedade
de recursos, possibilidade de preservar
a música numa memória para depois
resgatá-la e reeditá-la, e o menor
preço. O Synclavier (1976) e o
Synclavier II (1980) já vinham acoplados
a um computador que controlava todos os
parâmetros da síntese sonora e todas as
operações algorítmicas.
Outra grande revolução ocorreria no
mundo da tecnologia do som: a definição
do protocolo MIDI (1983), que permitiria
a troca de informações entre diferentes
teclados (agora não mais chamados de
sintetizadores) e entre eles e um
computador. A partir daí, cada vez mais
foram se sofisticando os aparelhos ou
surgindo novos (como é o caso dos
samplers e dos sample-players), para uso
profissional ou se simplificando, para
uso de amadores. Atualmente, continuam
surgindo no comércio teclados destinados
a um público amador que, num mini
estúdio doméstico, monta seus arranjos e
suas orquestrações com grande
facilidade. Vários profissionais de
outras áreas procuram esta aparelhagem
para fazer música nas horas de lazer.
Mesmo no campo da música eletroacústica,
cada vez mais se faz presente a figura
do criador que não tem uma formação
musical convencional habitual. Como o
preço desta tecnologia vem despencando,
a tendência é a popularização
progressiva desta prática.
Além da tecnologia da computer music, o
surgimento e aperfeiçoamento da guitarra
elétrica e do baixo elétrico permitiu a
um grupo crescente de jovens, no mundo
inteiro, formarem suas bandas, ensaiando
em apartamentos, muitas vezes para
desespero dos vizinhos. A guitarra
elétrica de corpo sólido surgiu nos anos
40, mas adquiriu popularidade
internacional com o adventos do rock’n’roll
a partir dos anos 60 e o surgimentos de
bandas pop profissionais, algumas de
alta sofisticação.
Outro fato novo que devemos destacar
nesta nova sociologia da Música
Doméstica é o surgimento de um grande
número de pequenas escolas particulares
de música, que romperam com o formato
educativo tradicional até então usado e
ministram aulas para crianças, com largo
uso dos teclados eletrônicos. Algumas
dessas crianças acabam se transformando
em músicos profissionais. Muitos adultos
também recorrem a estas escolas com a
única finalidade de preencher o seu
tempo de lazer.
Estamos assistindo a um renascer da
Música Doméstica, graças ao grande
desenvolvimento da tecnologia, a mesma
que a tinha conduzido quase à extinção.
E hoje, com uma vantagem adicional em
relação ao século XIX: o amador faz
música em seu quarto, nas horas de
lazer, e depois assiste a uma ópera ou a
um mega show de um pop star
internacional no monitor de sua sala.
São apenas alguns passos.
Ricardo Tacuchian
Compositor e Regente
Membro da Academia Brasileira de Música
(textos publicados nas colunas deste
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Imagem de capa: Dom Pedro I ao
piano, compondo o Hino Nacional - quadro de
Augusto Bracet (reprodução da internet)
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