22/10/2016
Lo
Schiavo, uma ópera de fazer se
perder o fôlego
Critica da apresentação da ópera Lo Schiavo
no Theatro Municipal do Rio de
Janeiro em 21 de outubro de 2016
Ontem à noite, Carlos Gomes renasceu
em sua pátria. Os descrentes, os que
duvidavam da originalidade, do poder
de criação e da surpreendente
orquestração do mestre, tiveram que
se render. Lo Schiavo ainda ocupará
destaque, no lugar que merece na
lírica internacional. Nunca foi
cantada fora do Brasil.
O espetáculo do Theatro Municipal,
causou uma enorme admiração e
espanto na plateia, que a princípio
se mantinha fria e que pouco a
pouco, entregou-se à realidade dos
fatos. O nível da montagem foi de um
profissionalismo intenso que
dignificou a obra.
Lo Schiavo é sem dúvida, a mais
brasileira e mais melodiosas das
composições de Gomes.
Por desentendimentos entre o
compositor e o seu libretista,
Rodolfo Paravicini, ópera não foi
levada à estreia no Teatro de
Bolonha. A inclusão da letra do Hino
da Liberdade, da autoria de
Francesco Gigante, causou batalhas
judiciais e Carlos Gomes resolveu
que o seu escravo, veria a luz nas
alvoradas cariocas.
A estreia aconteceu no Teatro
Lírico, no Rio de Janeiro, em
setembro de 1889, a pouco mais de um
mês da Proclamação da República.
No enredo, baseado num argumento do
Visconde de Taunay, a ação começa em
1567, no Rio de Janeiro.
Ilara, índia escravizada, e Américo,
filho do nobre português, Conde
Rodrigo, se amam. Para se livrar
desta afronta, o Conde ordena que o
filho vá lutar junto aos
portugueses, contra os índios
Tamoios, que se rebelaram contra os
invasores do solo pátrio. Com a
partida de Américo, Ilara e Iberê,
chefe tamoio escravizado, são
forçados a um casamento e vendidos,
depois libertos pela Condessa de
Boissy. Américo é feito prisioneiro
pelos tamoios que querem trucidar o
inimigo. Iberê intervêm e pede para
ficar a sós com Américo. Ele conta a
Américo que apesar do grande amor
que ele sente por Ilara, sempre foi
rejeitado, mantendo com ela apenas
um relacionamento fraternal. Iberê
entrega Ilara a Américo,
ordenando-lhes que fujam. Os Tamoios
retornam furiosos e Iberê proclama
que o amor triunfa, e oferece a sua
vida em troca dos fugitivos.
O espetáculo
Após uma pequena e instigante
abertura, todos trabalham e cantam
sobre um casamento que será
realizado sem amor. Entra Ilara e
canta o recitativo “Segne e
sorveglia i passi miei”, o capataz
Gianfera (o barítono Leonardo
Páscoa, excelente e sinistro) à
espreita e persegue. Depois canta a
ária “Ei partirà”, Américo partirá
deixando-lhe no peito, encravada,
uma flecha de dor.
Enfim Adriane Queiroz, depois de
correr o mundo, estreia no
Municipal. O medo ronda Ilara que
pressente as suas desventuras.
Magnífica a entrada da Adriane, que
envolveu a todos, com uma
interpretação dolorida e resignada,
projetando sua beleza vocal e
provocando já uma pequena reação no
público tímido mas atento.
Chega a vez do destemido Iberê
acorrentado, que questionado por
Américo,”Quale delito hai tu commeso?
Responde que nascido livre nas
selvas, é agora um escravo. Numa
rude guerra lutou junto ao pai, que
foi morto e ele aprisionado. Américo
o livra das correntes.
Vozes primorosas, Rodolfo Giuliani
foi gigantesco como um Iberê valente
e desafiador. Fernando Portari, um
Américo insubmisso e apaixonado.
Grandes emoções foram se acumulando.
O Conde ordena ao filho que parta,
“Di ribellione autore”, lindo dueto
que contrasta à vontade do pai e a
paixão do filho. O baixo Saulo Javan
deu vida a um Conde enérgico e
rigoroso.
Segue o belíssimo dueto de amor
“Conservi ognor fedele”, Américo e
Ilara fazem juras de uma fidelidade
eterna.
O casamento forçado termina o 1º
ato.
2º ato:
No caramanchão da sua casa em
Niterói a Condessa de Boissy, recebe
a visita de Américo, anunciado por
Lion, (Flávio Melo, voz clara e bem
projetada) e cantam, o dueto
“Conte... voi obliarmi sembrate”, a
condessa está apaixonada por
Américo, mas desconfia que o seu
coração já pertence a outra. A
Condessa interpretada por Cláudia
Azevedo, foi elegante, apaixonada e
enfim descrente - voz linda e bem
articulada.
Américo canta a ária mais celebre da
ópera, “Quando nascesti tu”, onde
ele canta louvores a Ilara,
Comparando o nascimento dela, ao de
uma flor, beijada pelo céu.
Magnífica a intervenção de Portari.
Voz fresca, pianíssimos apurados ao
extremo. Pungente e saudoso. Bravos
ao nosso tenor.
A Condessa canta o Hino da Liberdade
e liberta os escravos, entre eles
Ilara e Iberê.
Acontecem 4 pequenos bailados, onde
o nosso corpo de baile, em parco
espaço e entre pisos desiguais,
realizou o milagre de desenvolver
uma coreografia, criativa e
certeira. Américo se enfurece ao
saber que sua amada está casada com
Iberê, e o agride, chamando-lhe de
traidor. A Condessa horrorizada vê
que a sua rival é uma escrava e o
ato termina num espetacular
concertato.
3º ato.
Na floresta, Ilara canta “Alba
adorata”, e diz que não é mais
escrava, mas o quanto esta liberdade
é triste – segue-se então a ária “Oh
ciel di Parahyba”, onde ela recorda
quando vivia sob o sol, às margens
do rio Paraíba, ela tinha sonhos de
amor e a vida, era serena e bela.
Outra vez Adriane mostrou suas
qualidades de interprete refinada.
Respiração perfeita, agudos
penetrantes e muita emoção.
Segue-se o dueto, onde Iberê chama
Ilara de cruel porque ela lhe foge.
Ela responde que sofre de amor por
Américo. Iberê a expulsa, e só,
reflete no monólogo, que é frágil o
coração de uma mulher contaminado
por mortal veneno - Que beleza o
discurso do Rodolfo Guiliani. Voz
potente, penetrante de angustia e
dor. Grande momento. Muitos bravos.
Na quarta cena do 3º ato, A
Confederação do Tamoios, onde chefes
guerreiros índios traçam planos para
destruírem os portugueses – Momento
apoteótico em que várias vozes se
sobressaíram: Goitacá, Pedro
Olivero, majestoso e intenso –
Guaruco, Ricardo Tuttman –
Tubinambá, Ciro D’Araújo – Tapacoá,
Pedro Gattuso – Carijó, Geilson dos
Santos – Caiapó, Weber Duarte –
Arary, Celso Mariano – Butocudo,
Elizeu Batista e mais os selvagens
Luiz Furiati, Ilem Vargas, Fábio
Belizallo e Luiz Gustavo Farina –
Todos bem marcados e desenvoltos em
suas representações. Parabéns a
todos.
4º Ato.
Os selvagens estão de vigília,
desconfiam de Iberê. Iberê canta
“Sogni d’amore” – Um Rodolfo
Giulani, completamente dono da
situação, conquistou a plateia numa
interpretação consagradora. E surge
a Alvorada, tão esperada. Nossa
orquestra brilhou sob a direção
segura de Roberto Duarte. Ao som das
nossas matas e aos cantos dos
pássaros se junta, as clarinadas que
anunciam o novo dia. O dia da
libertação - Empolgante, mas acho
que cenicamente poderia ser mais bem
resolvida. Com cenários virtuais
poderiam mostrar o acordar da
floresta: os diversos pássaros
cantando, as naves nos toques de
clarim, a paisagem na madrugada e no
alvorecer. Ficou monótona a figura
estática de Iberê sentado, na
expectativa do embate que viria
ocorrer em seguida.
Surge Ilara nos trajes de guerreira
e canta “Come serenamente”. Como um
barco embala um pescador que canta e
lamenta por amor, ela sofre por
Américo. Nova conquista de Adriane
Queiroz. Sofrida, dolorida, intensa
e sonhadora, Ilara desfia o seu
destino.
Em seguida Américo, feito
prisioneiro dos tamoios, confronta
Iberê que pede que os selvagens se
retirem. Ficando a sós cantam um
belo dueto. Américo acusa Iberê de
traição e pega um punhal para
matá-lo. Ilara separa os dois
contendores. Tudo fica esclarecido
num dos mais belos trios do
repertório operístico: L’amai
nell’iride. Iberê pede que os dois
fujam entregando Ilara a Américo. Os
dois partem e Iberê se sacrifica
dizendo que o amor triunfa.
O resultado da montagem foi
amplamente festejado. O público
aplaudiu freneticamente e apesar de
beirar as 24 horas, não fugiu em
bando para pegar o último metrô.
Juan Guillermo Nova foi o
responsável pelos cenários virtuais
e praticáveis imitando um solo
rochoso. Foram eficazes e
eficientes. Lindas as projeções da
abertura. No primeiro ato um quadro
evocando a Primeira Missa, de Victor
Meirelles, funcionou simbolicamente
para o final do casamento a força.
O figurinos fantasiosos de Alberto
Spiazzi, nos lembravam sempre que
estamos na ópera e não na realidade.
Bastante coloridos e enfeitados
deram conta da função estética.
A iluminação de Fábio Retti, precisa
de ser melhor ajustada. Algumas
vezes os solistas ficaram nas
sombras, mas foi bem elaborada e com
grandes momentos.
A coreografia de João Wlamir,
encantou pela originalidade e
efeitos corporais ondulantes. Fugiu
da mesmice. Inventivo e brilhante.
O nosso coro foi estupendo e
arrepiante. Trabalho maravilhoso do
maestro Jésus Figueiredo.
As participações do nosso corpo de
baile e da primeira bailarina Karem
Mesquita, foram marcantes e vivas.
Profissionalismo e precisão. Muitos
aplausos calorosos e acolhedores.
A direção cênica de Pier Francesco
Maestrini, foi e bem resolvida,
principalmente nos momentos das
grandes movimentações das massas.
A nossa orquestra foi o deslumbre de
sempre. Professores atentos e
seguros sob a batuta do Maestro
Roberto Duarte, grande conhecedor e
pesquisador de Carlos Gomes. Um
desempenho equilibrado. Com nuances
e momentos de grande esplendor.
Bravos!
Lo Schiavo prova definitivamente a
glória de Carlos Gomes. Sua música é
diferente, pessoal, de imensa beleza
e qualidade. O seu maior pupilo sem
dúvida nenhuma foi Villa-Lobos, que
inspirado nele, criou a sua música
baseada no canto dos nossos
pássaros, nos sons das nossas
florestas, nos nossos índios, enfim
do Brasil. Villa canta o Brasil
pesquisado com os recursos do Século
XX, Carlos Gomes canta o Brasil na
língua universal da sua música: a
poesia é italiana mas o coração é
brasileiro.
Um espetáculo para se aplaudir de
pé, vocês não podem perder este
canto de amor ao nosso país. E viva
Carlos Gomes, que enfim renasce em
sua terra..
Eu com Rodolfo Giuliani. Um Iberê histórico.
Eu e Adriane Queiroz, uma Ilara magnífica. Bravos
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