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  • Reflexões em torno do Concertino para Violino de Guerra-Peixe

    por Ricardo Tacuchian
    18/03/2018

    Reflexões em torno do Concertino para Violino e Orquestra de Câmara (1972) de Guerra-Peixe (Petrópolis, 1914 – Rio de Janeiro, 1993)


    Hoje, 18 de março de 2018, comemoramos a data de nascimento de Guerra-Peixe (foto ao lado). Se ele fosse vivo, faria 104 anos. Como homenagem ao grande compositor petropolitano, vamos lembrar uma experiência que vivi em Nova York, referente ao Concertino para Violino e Orquestra de Câmara de Guerra-Peixe. Paralelamente faremos algumas reflexões, ainda que muito superficiais, sobre as expressões nacionalista, nacional e universal.

    Em 11 de abril de 1996 eu participava do Festival Sonidos de las Américas, em Nova York, todo ele dedicado a compositores brasileiros contemporâneos. Neste dia, estava programado o Concertino para violino e orquestra de câmara de Guerra-Peixe, com a ACO (American Composers Orchestra) Chamber Orchestra, sob a direção do maestro Paul Lustig Dunkel e com a violinista Jean Ingraham. Às 8 horas da noite, cheguei em The New School, Tishman Auditorium tendo antes, no caminho, imaginado que dificilmente uma americana poderia entender uma obra tão brasileira, ou melhor, tão regionalmente brasileira.
    Eu estava enganado. Jean Ingraham tocou o Concertino de modo primoroso, fundindo sua maravilhosa técnica instrumental com a expressão de um autêntico rabequista do nordeste brasileiro. O Concertino é uma obra de extrema concisão que só poderia alcançar aquela dimensão estética nas mãos de um grande Mestre. O primeiro movimento abre com um tema forte (“o nordestino é antes de tudo um forte”, conforme já afirmara Euclides da Cunha) que contrasta com o lirismo do segundo tema. O segundo movimento é um interlúdio, onde a melodia nostálgica do violino se estende sobre uma segunda corda solta pedal, dentro do mais puro estilo da rabeca nordestina. É ligado, sem interrupção, ao último movimento. Aqui as terças paralelas nas flautas, o ritmo da zabumba e as escalas modais são superpostos com interferências de figurações complexas da parte solista. É um verdadeiro cenário sonoro da caatinga.

    A interpretação extremamente consistente da obra de Guerra-Peixe, em Nova York me provocou algumas reflexões sobre conceitos tais como nacionalismo, nacional e universalismo na Música Brasileira.

    Como sabemos, esta obra é de 1972 e foi encomendada por Cussy de Almeida para a Orquestra Armorial de Câmara de Pernambuco. O Movimento Armorial era liderado pelo teatrólogo Ariano Suassuna. A primeira audição da obra foi feita pelo violinista polonês Stanislaw Smilgin, no mesmo ano da composição. Três anos depois, o próprio Smilgin gravou a obra em LP para o selo RCA.

    Ernani Aguiar, discípulo do compositor, tocou este Concertino, seis vezes, em Florença e outras cidades da Toscana, com tanto êxito que, todas as vezes, voltava ao palco para bisar o terceiro movimento. Os italianos entenderam, com emoção, a obra de Guerra-Peixe. Com igual êxito, Paulo Bosísio gravou esta obra para a Westdeutscher Rundfunk (WDR, West German Broadcasting), sob a regência de nosso Roberto Duarte, para um público com uma cultura completamente diferente daquela do país mediterrâneo. A recepção da obra não poderia ser mais calorosa, sendo a obra retransmitida pela Rádio do Oeste Alemão, várias vezes, de acordo com testemunhas locais que se comunicavam com Bosísio. Portanto, na prática, a composição “nordestina” de Guerra-Peixe se mostrou profundamente abrangente, independentemente de que sua inspiração fosse regional, nacional ou universal.
    Num de seus textos, Suassuna afirma que “a arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos ‘folhetos’ do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’ e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma as Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados” (SUASSUNA, Ariano. Jornal da Semana, 20/05/1975).

    Ora, Guerra-Peixe, que era um ardente defensor das doutrinas musicais de Mario de Andrade, com esta encomenda do Movimento Armorial, radicaliza ainda mais seu ideal andradeano, na procura de uma expressão autenticamente nordestina. Afinal de contas, ele tinha vivido uma temporada no nordeste onde fez importantes pesquisas etnográficas, principalmente dos diferentes tipos de Maracatu. Depois que foi publicado O Banquete de Mário de Andrade, onde o autor coloca na voz do fictício compositor Janjão a frase “não sou nacionalista Pastor Fido... sou simplesmente nacional”, Guerra-Peixe sempre afirmava que não era nacionalista, mas, como Janjão (= Mário de Andrade), era simplesmente nacional. Outros compositores, especialmente os seguidores de Guerra-Peixe, insistiram nesta distinção, temerosos da expressão “nacionalista” ser confundida com manifestações políticas como o nazismo. Além disso, o compositor nacionalista seria intencionalmente brasileiro, lançando mão de temas folclóricos, escalas modais, ritmos regionais de danças e outros clichês de brasilidade. Já o compositor nacional fazia uma música absolutamente pessoal, mas que, involuntariamente, apresentava um perfil inconsciente de brasilidade que emergia espontaneamente do seio da obra. Na verdade, as distinções entre “nacional” e “nacionalista” eram irrelevantes. Entretanto, a se louvar por esta dualidade semântica, o Concertino seria, antes, uma obra nacionalista (eu diria, radicalmente nacionalista), uma vez que a intenção precípua do compositor foi atender a uma doutrina regionalista do Movimento Armorial, usando, no instrumento solista, gestos do rabequista, escalas nordestinas e ritmos folclóricos. Não importa que toda a temática da obra seja original (porque o melodismo de Guerra-Peixe era ilimitado). O que vale é que ele, intencionalmente, escreveu uma obra nacionalista.

    Depois que ouvi as excelentes interpretações do violinista polonês e, mais adiante, fora do Brasil, da violinista americana, com um grande sucesso junto ao público da The New School, em Nova York e com as informações que me foram concedidas por Ernani Aguiar e por Paulo Bosísio, cheguei à conclusão que a discussão sobre a dualidade conceitual nacionalista/nacional perdia todo o sentido, pelo menos no caso de Guerra-Peixe. Na verdade, a soberba criatividade de Guerra-Peixe e seu notável domínio da técnica de composição davam à sua obra uma roupagem universal que poderia ser entendida por qualquer intérprete e qualquer público, em qualquer parte do mundo. Se aceitarmos o conceito que uma obra musical não está terminada quando o compositor escreve a barra dupla final ou, mesmo, quando o intérprete toca a última nota no palco, mas só termina quando a obra é decodificada no cérebro dos ouvintes, então, o Concertino de Guerra-Peixe é, também, uma obra universal.

    O Concertino para violino e orquestra de câmara de Guerra-Peixe é uma obra nacionalista porque esta foi a sua intenção, ao aceitar a encomenda do Movimento Armorial; é nacional porque, independente de seus temas originais, possui uma brasilidade que ultrapassa os limites do nordeste brasileiro; e é universal porque, independentemente de sua nacionalidade, pode ser decodificado como música de alta qualidade em todo o mundo e executado por qualquer intérprete internacional.
     

    Ricardo Tacuchian
    Compositor e Regente
    Membro da Academia Brasileira de Música

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