por Ricardo Tacuchian
10/11/2017
Acho que fiz um contato mitológico, não na
Grécia, mas na Itália, com os Deuses do
Olimpo que saíram dos Bálcãs e voaram para a
Lombardia. No inverno europeu de 2000 fui
premiado com uma Residência Artística, na
cidade de Bellagio, às margens do Lago di
Como. Meu projeto, financiado pela
Rockefeller Foundation, foi a criação de um
Quarteto de Cordas. Por um período de um
mês, na Villa Serbelloni, um palácio
renascentista, comprado pela fundação
americana, convivi com escritores, poetas,
cineastas, fotógrafos e artistas plásticos
de várias partes do mundo, cada um
desenvolvendo seu próprio projeto. Éramos 20
criadores. Eu era o único músico e recebi um
estúdio, separado da Casa principal da
propriedade, situado no meio do bosque que
circundava o Palácio e na parte mais alta do
morro que avançava, feito um promontório,
contra o Lago. O estúdio estava muito bem
equipado com móveis, computador e piano. Das
janelas de meu estúdio, eu podia ver, entre
as árvores do bosque, lá em baixo, o Lago de
Como. Naquele cenário mágico era como se eu
estivesse protegido pelos deuses do Olimpo.
À noite, depois do jantar, os artistas se
reuniam para ouvir, um de nós, a falar de
sua carreira e de seu próprio projeto em
Bellagio. A cidade propriamente dita ficava
à beira do Lago e consistia de um povoado de
pescadores e marinheiros, hotéis de turismo
que só funcionavam fora da estação de
inverno, da Igreja de San Giacomo, com uma
fachada lombardo-gótica e seu campanário e,
com seus soberbos jardins italianos, algumas
Villas luxuosas, entre elas a Villa
Serbeloni e a Villa Melzi. Dos sinos de San
Giacomo eu aproveitei seus chamamentos, logo
na abertura do Quarteto. Na Villa Melzi,
próxima da Villa Serbeloni, onde eu estava
hospedado, morou Franz Liszt, de 1837 a
1839, época em que compôs sua famosa
Fantasia quase Sonata “après une lecture de
Dante”. Em uma outra cidade, à beira deste
lago, em Lecco, Carlos Gomes, depois de seu
estrondoso sucesso com Il Guarany, construiu
sua mansão, no meio de um grande bosque.
Visitei o local, hoje um parque de lazer
aberto ao público. A mansão, atualmente, é
uma Escola Municipal de Música. Fui recebido
pela Direção da Escola com todas as honras
de um patrício do grande Carlos Gomes.
De Bellagio se descortinavam os Alpes
italianos e suíços, cobertos de neve. Foi
por esta região que os lombardos invadiram a
Península Itálica, no século VI, daí o nome
da região de Lombardia. Todos estes
elementos, geográficos, históricos e
humanos, eu procurei descrever musicalmente
em meu Quarteto de Cordas nº 3 que denominei
de Bellagio. Uso, inclusive, no terceiro
movimento, uma breve citação da Sonata que
Liszt escreveu nesta cidade.
Diariamente, do alto de meu estúdio de
trabalho, através de uma ampla janela de
vidro, eu observava, lá em baixo, o Lago di
Como. Nos 30 dias em que trabalhei naquela
floresta encantada, nunca descortinei o Lago
da mesma forma: de dia ou à noite, ora tinha
diferentes tonalidades de azul ou cinza, ora
esbranquiçado ou coberto de fina bruma, de
densidades variáveis, e até totalmente
invisível. Este cenário, pontuado pelos sons
dos sinos da Igreja lombarda de San Giacomo
foi extremamente inspirador.
Nove meses depois deste estágio, eu retornei
à Itália (sempre protegido pelos Deuses do
Olimpo), para a estreia mundial do Quarteto
Bellagio, interpretado pelo Quarteto
Guarnieri, no Teatro Filodrammatici, em
Milão (também conhecido como La Piccola
Scala)
No Brasil, a estreia foi feita pelo Quarteto
Radamés Gnattali, em 2008, no Rio de
Janeiro.
Em 2013 o mesmo conjunto lançou o CD
QUARTETO RADAMÉS GNATTALI INTERPRETA RICARDO
TACUCHIAN (ABM Digital), com a integral de
meus quatro Quartetos, entre eles o Quarteto
de Cordas nº 3 “Bellagio”. Hoje, não é mais
a integral porque, em 2016 escrevi o Quinto
Quarteto de Cordas, este dedicado ao
Quarteto Radamés Gnattali que tem divulgado
tanto minha obra, mas que não possuía nenhum
Quarteto meu dedicado a eles. O Quarteto de
Cordas nº 5, estreado pelo Quarteto Radamés
Gnattali, vai ser gravado em 2018 (*). |
Cd do Quarteto Radamés Gnátalli com
a integral dos Quartetos de Ricardo
Tacuchian, lançado em 2013 |
Dezessete anos depois de minha viagem à
Lombardia, os deuses do Olimpo continuam me
protegendo.
RICARDO TACUCHIAN
Compositor e Regente e membro da
Academia Brasileira de Música
(*) À guisa de complemento:
OS CINCO QUARTETOS DE CORDAS DE RICARDO
TACUCHIAN
Tenho por hábito dar um título literário a
cada um de meus Quartetos de Cordas, prática
que não é usual no repertório internacional.
No Quarto e Quinto Quartetos, fui mais
longe, dei subtítulos também a cada um dos
quatro movimentos.
Quarteto de cordas nº 1 “Juvenil”. Rio de
Janeiro, 1963.
1. Moderato; Allegro assai; 2. Lento; 3.
Allegro vivace
O Quarteto de Cordas nº 1 “Juvenil” foi
escrito em 1963, quando o compositor
estudava na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, sob a orientação de José Siqueira.
Apresenta uma tendência nacionalista, com
sugestões de ritmos de danças populares e
estruturas modais e pentatônicas. Foi
estreado em 1964, no Rio de Janeiro, pelo
Quarteto Oficial da UFRJ. Em 1974 foi
gravado pelo Brasil Quarteto da Rádio
Roquette Pinto. A estreia desta obra nos
Estados Unidos foi em 1990, realizada pelo
Armadillo Quartet (Los Angeles).
Quarteto de cordas nº 2 “Brasília”. Rio de
Janeiro, 1979
1. Allegro ma non troppo; 2. Andante; 3.
Allegro vivace
Este quarteto representa uma total virada
estética do autor. Numa linha experimental e
vanguardista, a obra explora novas
sonoridades do quarteto de cordas e sua
estruturação musical é baseada
primordialmente em densidades e texturas. O
contraste de sons agressivos e delicados
procura exprimir a atmosfera de uma cidade
como Brasília, com uma visão voltada para o
futuro. A obra foi dedicada ao Quarteto de
Cordas da Universidade de Brasília que o
estreou em São Paulo, em 1983. No mesmo ano
a obra foi apresentada no Rio de Janeiro, na
V Bienal de Música Brasileira Contemporânea,
pelo Quarteto de Cordas da Universidade
Federal da Bahia. Sua estréia
norte-americana foi no mesmo dia da estreia
do Quarteto Juvenil, em Los Angeles.
Quarteto de Cordas nº 3 “Bellagio”. Bellagio,
Itália, 2000
1. Maestoso. Allegro; 2. Moderato; 3.
Allegro Giocoso
Obra escrita sobre o Sistema-T, controle de
alturas criado pelo compositor, e inspirada
pela paisagem da cidade de Bellagio, Itália,
às margens do Lago de Como, onde o autor foi
residente. A obra faz uma breve citação à
Fantasia quase sonata (après une lecture de
Dante), de Liszt que escreveu a obra quando
morou nesta mesma cidade, entre os anos 1837
e 1839. Tacuchian foi patrocinado pela
Rockefeller Foundation (USA), proprietária
da Villa Serbelloni, em Bellagio. A estréia
do Quarteto foi, no mesmo ano, nove meses
depois, em Milão, Teatro Filodrammatici, com
o Quartetto Guarnieri. No Brasil, a obra foi
estreada pelo Quarteto Radamés Gnattali, em
2008, na série Brasiliana da Academia
Brasileira de Música.
Quarteto de Cordas nº 4 “Trópico de
Capricórnio”. Rio de Janeiro, 2010.
1. Moderato (Tristes Trópicos); 2. Moderato.
Allegro Vivace (Trópicos Emergentes)
Trópico de Capricórnio é um círculo
imaginário de latitude mais ao sul do globo
terrestre, no qual o sol aparece
verticalmente ao meio dia. Este fenômeno
ocorre uma vez por ano (solstício de
dezembro). O círculo cruza três oceanos,
três continentes e dez países (Brasil,
Paraguai, Argentina, Chile, Austrália,
Madagascar, Moçambique, África do Sul,
Botsuana e Namíbia). Alguns destes países,
tradicionalmente colocados à margem da
história, estão, agora, no século XXI,
assumindo um novo papel no mundo
globalizado.
Em seu quarto Quarteto de Cordas, o
compositor optou por uma linguagem musical
mais eclética, evitando certo maneirismo
folclórico que o título poderia sugerir. A
obra apresenta apenas dois movimentos: o
primeiro mais calmo e introspectivo
(“tristes trópicos”) e o segundo mais movido
(“trópicos emergentes”). Ambos os movimentos
apresentam uma grande economia de material
temático.
O Quarteto de Cordas nº 4 “Trópico de
Capricórnio” foi encomendado pela FUNARTE,
em 2011 e estreado na XIX Bienal de Música
Brasileira Contemporânea, no mesmo ano, pelo
Quarteto Radamés Gnattali, no dia 14 de
outubro na Sala Funarte, Sidney Miller (Rio
de Janeiro).
Quarteto de Cordas nº 5 “Afrescos”. Rio de
Janeiro, 2016.
I. Andante – Allegro Violento (A Casa de
Menandro); II. Allegro Moderato (A Catedral
de Etchmiadzin); III. Religioso (Cimabue e
Giotto em Assis); IV. Allegro ma non tropo
(Cândido Portinari).
Parte da obra de Tacuchian surgiu de
sugestões oferecidas pelas artes plásticas,
como Vitrais, Tapeçaria, Azulejos ou
Cerâmica (para piano), Aquarela (para piano
- mão esquerda), Água Forte (para dois
pianos), Grafite (para piano a quatro mãos),
Xilogravura (para viola e piano),
Litogravura (para flauta e piano), Mosaicos
(para dois violoncelos), Pintura Rupestre
(para orquestra de câmara), Serigrafia (para
trompete e piano), Estruturas Verdes (para
violino, violoncelo e piano), Light and
Shadows (para clarone, vibrafone, harpa,
percussão e contrabaixo), Texturas (para
duas harpas), Natureza Morta (para flauta,
clarineta, violino e violoncelo) e
Transparências (para vibrafone e piano). O
Quarteto de Cordas nº 5, com o subtítulo de
“Afrescos”, integra esta série de obras. Em
quatro movimentos, cada um com seu título
particular, o Quarteto não pretende
descrever uma determinada cena representada
por afrescos nem se refere,
obrigatoriamente, às grandes obras primas
universais criadas com esta técnica. O
critério de escolha de cada tema tem sempre
uma relação afetiva e cultural ligada ao
compositor: suas origens greco-romanas, seus
antepassados armênios, sua tradição cristã e
seu solo pátrio. É quase um autorretrato
sonoro do compositor.
Primeiro Movimento: A CASA DE MENANDRO (ca
7’)
A Casa de Menandro mostra a forte impressão
do compositor ao visita-la em Pompeia que
ficou soterrada durante cerca de 1800 anos,
antes de ser redescoberta pelos arqueólogos
no século XVIII. Milagrosamente este Domus
ficou em grande parte de pé, inclusive com a
preservação da decoração com muitos afrescos
em seu interior. Dentre eles, se destaca o
afresco retratando o grande poeta e
teatrólogo grego Menandro, razão porque a
Casa é, hoje em dia, conhecida como a Casa
de Menandro (não se conhece o nome de seu
proprietário). Certamente pertencia a uma
família muito rica que cultivava as artes e
a música. Toda a população da cidade pereceu
em meia hora, pelas explosões do Vesúvio, no
ano 79, pelos gazes venenosos expelidos pelo
vulcão ou pisoteada durante o pânico de uma
fuga malograda. Em 48 horas a cidade ficou
soterrada por rochas, cinzas e lava, numa
profundidade de 15 metros. Os visitantes
deste sítio arqueológico têm a impressão de
ainda ouvir o eco dos poemas e canções que
eram recitados e cantados com acompanhamento
da lira e com a inspiração do poeta Menandro.
Segundo Movimento: A CATEDRAL DE ETCHMIADZIN
(ca 4’30”)
A Armênia foi a primeira nação do mundo a
adotar o Cristianismo como religião oficial,
no início do século IV, quando os cristãos
ainda sofriam perseguições no Império
Romano. A Catedral de Etchmiadzin é a mais
antiga Catedral do mundo cristão e, ainda
hoje, é a sede da Igreja Apostólica Armênia.
O prédio sofreu inúmeras reformas e
ampliações. Os monumentais afrescos da
cúpula da Igreja são apenas do século XVI. O
compositor usou, neste movimento, motivos
tirados de seu balé Hayastan (que é o nome
com que os armênios denominam sua pátria).
Terceiro Movimento: CIMABUE E GIOTTO EM
ASSIS (ca 4’30”)
O florentino Giotto nasceu no século XIII e
é considerado o precursor do Renascimento
Italiano, com o uso da perspectiva em seus
quadros. Foi discípulo de Cimabue, outro
grande mestre da Idade Média. Os afrescos de
Cimabue e de Giotto estão difundidos em
várias igrejas do norte da Itália. Dentre
eles uns dos mais impressionantes são os que
decoram a Basílica de São Francisco de
Assis, na Perúgia, região da Umbria. São
cenas religiosas monumentais, focalizando a
vida de São Francisco.
Quarto Movimento: CÂNDIDO PORTINARI (5’)
Portinari é o grande pintor modernista
brasileiro que retratou o povo
marginalizado, os retirantes e os
despossuídos de sua pátria. Foi um ativista
político que sofreu algumas represálias
devido à sua posição ideológica. No final de
sua vida ele se dedicou principalmente à
produção de grandes murais e afrescos,
inclusive com temática religiosa. No
Quarteto de Cordas nº 5 “Afrescos”, de
Tacuchian, Cândido Portinari representa a
pátria do compositor bem como os seus ideais
comuns em prol da justiça social. Tacuchian
há muito abandonou a estética nacionalista,
mas não se furtou de empregar algumas tintas
nacionais da mesma forma que Portinari o
fizera em sua obra.
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